Se não houver nenhuma anormalidade, todas as crianças até por volta dos 4 anos são capazes de iniciar o desfralde por sua própria vontade. Porque este é um processo maturativo, natural no desenvolvimento normal do ser humano. Sendo assim, não é necessário treino de desfralde. No entanto, este ainda é um dos temas mais divergentes na parentalidade actual. A abordagem Pikler e a neurociência explicam-nos a importância de respeitar o corpo da criança, e este conhecimento é precioso para a saúde global dos nossos filhos.
Qual é o papel da fralda?
Nos tempos ancestrais, nos climas mais frios, em que era preciso vestir os bebés, usavam-se folhas, peles de animais e outros recursos naturais para envolver a pele dos bebés. Mais tarde eram enrolados em faixas de linho ou lã. Nos climas mais quentes, nos bebés que sempre puderam ficar nus, as mães deixavam os bebés sem fralda e tentavam antecipar o xixi e o cocó do bebê e levá-lo para fazer no local adequado. A maneira mais natural em que uma criança pode esvaziar seus intestinos e bexiga é no instante em que deseja fazê-lo, no local onde está. Se houver alguma manipulação para o bebé fazer as necessidades noutro local, ele terá de fazer algo para que não está preparado: reter os esfíncteres (os músculos voluntários que são capazes de controlar a saída do xixi e cocó). Quanto mais cedo se faz um treino esfincteriano, mais problemas poderão surgir.
Houve realmente muitas invenções até chegar àquilo a que chamamos fralda. Hoje ela é realmente necessária, na nossa cultura, para manter a higiene das nossas famílias. Mas sendo necessário introduzi-la, será também necessário tirá-la?
Damos a fralda, tiramos a fralda, damos a chupeta, tiramos a chupeta, damos o objecto de conforto, tiramos o objecto de conforto. As necessidades dos pais, e sobretudo das mães, que têm de se separar dos bebés como nunca aconteceu na história, por longas horas e por vezes durante a maior parte do dia, obriga-as a usar acessórios para os filhos se sentirem seguros. Usar fralda é uma necessidade do adulto, não do bebé, que no entanto, de certa forma, entende a fralda como algo que faz parte dele, ela sempre lá esteve, desde o primeiro dia, em muitos desde a primeira hora. Para uma retirada da fralda consciente, é necessário que haja a maturação de vários sistemas dentro do corpo e mente do bebé. Então deixar a fralda é algo que deve ser feito por ele, quando já há consciência do corpo e dos seus limites. Nenhuma criança vai querer usar fralda quando já não precisar dela, acreditem.
A fralda não é tirada, a fralda é deixada. E esta é uma afirmação para o futuro dos nossos filhos.
Quando começar — entender os mecanismos que envolvem o processo de controlo dos esfíncteres
Compreendo que gerir fraldas, entre a compra a o uso, é chato. No entanto, é imprescindível para o bebé que assim seja. Compreendo que é um cargo financeiro assinalável (a não ser que usem fraldas reutilizáveis). Seja qual for a dificuldade, o que eu defendo é que o respeito pelo corpo dos nossos filhos é um valor mais alto.
Uma coisa é a maturação fisiológica e outra distinta é a experiência vivida. No típicos treinos de desfralde em dois ou três dias, quando chega a primavera ou quando a criança faz dois anos ou entra para a creche (tudo factores inventados pelos adultos), o que se faz é um treino do comportamento por reflexos condicionados, e aí a criança aprende a reter os esfíncteres em vez de os controlar. Lembram-se do cão de Pavlov? O que ela faz é corresponder à expectativa do adulto, e por repetição de uma acção e condicionamento de um objecto (neste caso, o bacio ou santa), ela aprende a comportar-se como se espera que ela se comporte. é uma pesada herança do comportamentalismo que infelizmente ainda reina em muitas visões da educação infantil.
O controlo de esfíncteres começa por ser um acto involuntário, quando o bebé nasce, e mais tarde converte-se em voluntário. O processo de consciencialização do controlo dos esfíncteres desenvolve-se em 3 etapas:
- a criança avisa depois de ter feito: olha e diz “cocó” p.e.
- a criança avisa durante, quando está a fazer
- a criança avisa antes (é capaz de antecipar, aqui inicia-se o processo de retenção, primeiro um instante e depois cada vez mais tempo)
Isto é maturação, e não treino. Não é possível treinar a maturação dos esfíncteres, assim como não é possível treinar a vinda dos dentes.
Este processo implica a maturação de 4 mecanismos:
Maturação neurológica
Para ser capaz de não usar fralda, a criança tem de saber de tomar decisões e ter boa consciência corporal, ser capaz de compreender o que está a passar-se no seu corpo. Para controlar todo o processo necessário para ir à sanita ou bacio fazer xixi e cocó, é preciso que ocorra um processo bem complexo no corpo:
– o corpo reconhece a sensação de bexiga cheia
– esta sensação atravessa toda a espinal medula desde a zona do sacro até atingir o cérebro reptiliano, o sistema límbico e o neocórtex: aqui acontece a tomada da consciência do xixi/cocó
– ser capaz de reter o esfíncter externo (o interno é involuntário) até fazer o processo mental de avaliação da oportunidade: onde vou fazer? como vou fazer? Para isto é necessária a maturidade destes músculos, que demora a atingir-se.
Esta capacidade para esperar para satisfazer necessidades que são básicas e instantâneas é o que define o auto-controlo típico do ser humano. No fundo, é o que significa crescer.
Depois de estar em condições para fazer xixi (despido, sentado, confortável), o cérebro envia sinal aos esfíncteres para que se abram e possam evacuar.
Maturação motora
O bebé deve ser capaz de controlar os esfíncteres, como já vimos, ser capaz de vestir-se e despir-se (não é obrigatório, podemos respeitar a autonomia da criança e despi-la, desde que o façamos com o seu consentimento), sentar-se por algum tempo para ficar no bacio/sanita, e sobretudo, ter alcançado a maturação dos músculos do pavimento pélvico. Na pélvis estão os órgãos da micção e defecção. Quando o bebé nasce não tem força nos músculos para manter a cabeça erguida ou gatinhar, mas já há um certo controlo muscular para manter os ossos no sítio. Esta maturação vai acontecendo progressivamente durante os primeiros anos. Na zona pélvica estão também os órgãos sexuais e por isso muitas vezes os desfraldes forçados acabam por criar complicações ao nível sexual que chegam à fase adulta. Daí também a importância dos cuidados de qualidade, porque todas as sensações que chegam ao bebé vão influenciar o comportamento dos músculos e a sensibilidade desta zona.
Só podemos exigir o controlo do corpo se o bebé já é capaz de compreender. Os desfraldes com treino fazem-se por condicionamento do comportamento num processo que não é consciente para a criança.
Maturação emocional
A criança pode estar fisicamente pronta para o desfralde e não o terminar, simplesmente porque ainda não está totalmente pronta. Há uma dimensão emocional muitas vezes negligenciada: ter auto-confiança, ter confiança no seu corpo e capacidades, ter vínculo forte estabelecido com o adulto que acompanha o processo.
Eu achar que a minha filha é capaz dá-lhe ânimo para ser capaz. A pessoa constrói-se a partir da imagem que o outro lhe dá se si. Quer isto dizer que as expectativas têm um grande impacto no desenvolvimento, e esta é uma das principais razões pelas quais os treinos de desfralde podem correr mal.
O hipotálamo, que regula as sensações do corpo e envia as mensagens de fome, sede, sono… reage a ambientes tensos com nervosismo, contração muscular e alheamento da situação, para se defender.
O bebé depende de um equilíbrio entre o ambiente interno e o ambiente externo, e um desfralde à base de manipulação de comportamentos pode levá-lo a muito stress e angústia.
Cada criança tem o seu ritmo e atinge as conquistas por ordem e timmings absolutamente individuais e que não vale a pena sequer comparar os processos de desfralde, que variam naturalmente de criança para criança.
Maturação social
Compreender como se faz xixi e cocó na sua cultura, as regras de etiqueta específicas destas acções. Esta é a mais fácil e acontece sem nos apercebermos, é preciso apenas que a criança tenha um bom modelo. Mas é também necessária a boa relação com a adulto que cuida, como já vimos antes, o entendimento (embora ainda precário) da diferença entre o eu e o outro e a vontade de imitar e cumprir os procedimento segundo o colectivo e já não apenas segundo si próprio.
É fácil perceber que isto é muita coisa para gerir. Se o cérebro estiver ocupado com outra necessidade vital, se estiver com fome, com sono, com uma emoção muito forte, seja estar inseguro ou estar num ambiente desconhecido, facilmente entra em falência e é injectado com hormonas de stress que podem associar sensações negativas a este processo e que se forem muito repetidas podem ser tóxicas para a criança.
No desfralde guiado pelo bebé não há pressão, nem sequer há acidentes. Simplesmente porque não há expectativas de que a criança acerte num momento definido pelo adulto. Se o bebé está sem fralda e faz xixi no chão é simplesmente o esperado, não é um erro.
Relacionado com todas estas maturações, há um factor que é elementar e quase ninguém fala, mas a abordagem pikler lembra-nos: a identificação do sujeito. Quando os bebés começam a dizer “eu”, “eu quero” e “é meu” eles estão a demonstrar que já começaram a desenvolver a consciência do eu e a distinção entre a sua individualidade e da dos outros. Quando nascem eles são uma simbiose afectiva com a mãe e o meio, é tudo um só. Quando começam a entender os seus limites eles estão mais preparados para controlar o seu corpo. O desfralde necessita do reconhecimento do eu para acontecer de forma autónoma, e este desenvolvimento da linguagem é crucial porque ele reflecte a capacidade da criança de compreender e levar a cabo a sua própria vontade.
Resumindo, o adulto não inicia o processo do desfralde. A criança inicia o processo autonomamente e o adulto acompanha-o com respeito. Há coisas que podemos fazer para melhorar e facilitar o processo, mas não vale a pena definir um timing ou apressar o que for. Colocar expectativas desajustadas nos nossos filhos trar-lhes-á uma imagem de incompetência.
Que sinais observar?
Se até aos 4 anos é esperado que bebé deixe a fralda por si mesmo (de dia), porque apressamos as coisas?
A tendência para apressar é realmente vincada na cultura actual e mesmo pais que estão a acompanhar desfraldes que se querem guiados pela criança caem no erro de elevar demasiado as expectativas sobre o tempo e a forma em que se processa. Nenhum processo de maturação é linear, precisamente porque o sistema é muito imaturo e qualquer alteração interna ou externa pode influenciar a curva de desenvolvimento. Os bebés podem interessar-se pelo wc durante uns dias e depois demorarem semanas a voltar a esse interesse. Podem ir ao bacio uma ou duas vezes por sua vontade e passarem depois meses sem avanços. A alternância entre competências já adquiridas e as novas competências é muito típica do desenvolvimento infantil. Épocas mais tensas podem travar o andamento do desfralde, como a ida para a escola, a vinda de um irmão, uma perda ou uma alteração grande na rotina familiar. Um desfralde pode durar um mês ou um ano.
A aprendizagem é integrada. Hão-de reparar que antes do desfralde a criança começa a coleccionar objectos durante as brincadeiras e a colocar peças soltas dentro contentores. Este dentro e fora é também uma preparação para a consciência das evacuações: o corpo contém o xixi e o cocó, do corpo sai, sai o cocó.
Alguns sinais de preparação podem ser observados para ajudar os pais a situarem-se no processo e saberem quando preparar o ambiente. Os primeiros sinais revelam-se geralmente a partir dos 18 meses com a criança a mostrar interesse por ir ao wc com os adultos. Nesse momento podem começar a preparar o ambiente e esperar.
Alguns sinais que podemos observar são:
– o bebé fala de si próprio na primeira pessoa: diz “Eu”, e geralmente com um verbo de desejo a seguir, manifesta vontade e entendimento dos limites do seu corpo
⁃ move-se com segurança
⁃ é capaz de interromper actividades para comunicar a vontade de fazer xixi/cocó ou dirigir-se à sanita/bacio
⁃ demonstra vontade em deixar a fralda. Este é o derradeiro sinal.
Este sinais não são normas, não têm uma idade específica para se revelarem, e servem apenas para orientar o acompanhamento de cada criança e não para iniciar o processo com controlo do adulto. Servem para ajudar a gerir expectativas, para saber quando preparar o ambiente, para ter mais ou menos a noção do ponto de situação, para ignorar falsos sinais e sobretudo, para acompanhar a criança com confiança
O mais importante é uma postura que vê o bebé como alguém capaz. É isso que garante a serenidade do processo, tanto para os pais como para os bebés. O ambiente também é emocional: um olhar sobre a capacidade da criança é condição para a motivação, a cooperação, a consciência e a paciência necessárias de ambas as partes para o desfralde acontecer.
Portanto, o adulto:
- mantém a atitude de confiança e respeito sobre o corpo do bebé
- garante que o ambiente é seguro e interessante para a criança
- observa os sinais para se situar no processo sem criar expectativas
- aceita a curva variável do desenvolvimento
- convida a criança a participar nas suas rotinas
- distingue desfralde de recusa da fralda
- mantém sempre uma significação positiva da fralda
O desfralde nocturno
O que é preciso fazer para o desfralde nocturno acontecer? Nada. Enquanto dorme, a criança não tem consciência do seu corpo. Se não tem consciência não tem vontade. Se não tem vontade, não pode exercer controlo sobre o seu corpo. Enquanto dorme é simplesmente impossível treinar uma criança para não satisfazer as necessidades de fazer xixi ou cocó imediatamente.
Ainda se acredita que o desfralde tem de começar e acabar na mesma linha temporal. Começa-se o diurno, e logo depois o nocturno e o que mais se ouve é que a segunda fase está a ser um fracasso. Claro, a criança está a dormir.
Então como é que se costuma treinar? Privando a criança de água, acordando-a a meio da noite para ir ao wc. Condicionando o seu subconsciente com tabelas das noites secas, com visualizações à base de desenhos sobre o que se pretende que ela faça (e não faça)… não depende da criança. O processo consolida-se sozinho e geralmente demora mais que o desfralde diurno. Até por volta dos 6 anos, num processo natural, não há razão para alarme.
Os desfraldes guiados pela criança ocorrem de muitas formas diferentes. Há as que começam e terminam a conquista, as que demoram mais um ano, as que pedem explicitamente para deixar de usar a fralda, as que farão muitos xixis no chão e as que farão nas cuecas, as que usarão o bacio primeiro para o xixi e depois o cocó e as que farão o contrário, as que não deixam a fralda e são os pais, que ao fim de umas semanas de fralda seca, decidem retirar, as que ficam interessadas em usar cuecas antes de terminarem o processo por completo, as que consolidam rapidamente e as que andam algum tempo a fazer escapes, as que desfraldam à noite alguns dias depois e as que demoram anos a desfraldar à noite.
O que é preciso reter é que o desfralde é pessoal, cada criança fará o seu, e que o desfralde nocturno dura mais do que o diurno, nalgumas crianças dias, noutras meses, noutras anos. E está tudo bem.
O papel do adulto no desfralde é preparar o ambiente e dar o exemplo. Tudo o que lhe compete garantir em relação ao bebé é que o processo está a ser maturativo e não manipulado.
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