O período de adaptação escolar é o tempo que uma criança demora a estar confortável física e psicologicamente num novo ambiente, e/ou com pessoas desconhecidas, até que crie um vínculo seguro aos lugares e às pessoas.
A introdução na creche com choro persistente e repetido é desamparo aprendido. Um mecanismo psíquico que permite ao ser humano sobreviver à constante falta de resposta às suas necessidades.
Acontece nos horrendos treinos de sono. Na introdução à creche, é uma defesa que o bebé cria porque sente que ninguém o escuta, porque as pessoas à sua volta parecem achar que está tudo certo, e então ele acaba por desistir de chorar e demandar uma resposta à sua necessidade. A psicóloga infantil Patrícia Fernandes refere: “Se soubessem o número de jovens que aparecem anos mais tarde em consulta com problemas resultantes do desamparo aprendido, a adaptação escolar seria vista de outra forma”.
Até este novo vínculo estar estabelecido, é provável que o bebé não se relacione com o meio ambiente com qualidade, não brinque, não coma e se recuse a fazer actividades propostas e a adormecer pacificamente. Porque até aí ele está em estado de alerta, a tratar sobretudo da sua necessidade principal: a de segurança afectiva.
Hoje é sabido que a qualidade dos vínculos precoces estabelece toda a base para a saúde mental na fase adulta. Autores como Bowlby ajudam-nos a entender a importância do apego seguro para a saudável relação consigo mesmo e com os outros.
“Na nossa sociedade não se dá suficiente importância ao desenvolvimento emocional dos bebés, interpretando-o desde a nossa perspectiva de adulto e as nossas ferramentas e estratégias, quiçá por isso normalizámos que o período de adaptação escolar seja um tempo em que os bebés choram e se sentem mal na escola, acreditamos que isto é algo por que têm de passar “à força”, em vez de focar nas necessidades dos bebés e tentar acompanhá-los da forma mais respeitosa possível. O bebé que começa a escola, mesmo que lhe expliquemos verbalmente antes, lhe leiamos livros sobre o tema… realmente não entende porque está ali e vivencia-o como um abandono”. – Laura Estremera Bayod
Portanto se a creche é necessária, é urgente que deixe de ser um mal. Sobretudo no primeiro impacto. Porque sem vínculo não se aprende. O vínculo é a base de tudo. Se as pessoas tivessem noção de que a vinculação segura é a base da leitura e da escrita, perceberiam a importância da adaptação escolar.
É urgente que o choro deixe de ser subestimado e entendido como um mecanismo passageiro e de pouca importância, é urgente reverter a normalização do mal-estar nestes períodos de adaptação, admitir as consequências a curto, médio e longo prazo do desamparo destes dias, escutar os bebés e atender às suas necessidades. Afinal, para que serve ser educador se não houver um ponto de partida do conhecimento do desenvolvimento infantil actualizado, que inclua as mais recentes descobertas da neurociência, por um lado, e a mais ancestral biologia, pelo outro? Ambos nos dizem que os bebés precisam de contacto permanente com uma figura de referência capaz de lhe atender às necessidades e de o auto-regular até que ele seja capaz de o fazer por si mesmo.
A vinculação não se força. Não é possível vincular à força. Portanto deixar um bebé à porta da creche nos braços de um desconhecido e esperar que o bebé entenda que é alguém de confiança, quando muitas vezes nem os próprios adultos têm a certeza disso, é de uma extrema violência. Um bebé que pode adaptar-se à creche na presença de um cuidador com quem já estabeleceu vinculação segura estará por certo preparado para uma experiência escolar positiva, e que não se sente em perigo ou ameaçado.
Evitemos então esse período de resignação, como tão bem denomina Gervilla (2006) e crianças com um comportamento que expressa conformidade que pode levar a dificuldades nos processos fisiológicos, sobretudo a alimentação e o sono e nos processos sociais, com dificuldade nos contactos e ligação emocional. Vamos finalmente dar o devido valor à saúde mental.
Há países que já puseram em prática protocolos de adaptação escolar respeitadores dos bebés. Na Alemanha, por exemplo, os pais são chamados a estarem presentes e disponíveis nas primeiras semanas. Citamos agora o “Modelo Berliner”: “O primeiro dia começa normalmente às 10 da manhã e dura 1 hora com o pai e a criança juntos numa sala com a pessoa chave e algumas outras crianças da mesma faixa etári
O pai senta-se num local designado durante a integração com a ideia de que a sua presença oferece tranquilidade e conforto (*pede-se que o pai mantenha o seu foco no seu próprio filho para que o seu filho saiba que você está lá exclusivamente para lhe oferecer conforto caso precise). Após os primeiros dias e com base na forma como a criança está a responder, os pais sairão da sala durante um breve período, embora sempre por perto. Esta separação aumentará gradualmente no decorrer das semanas seguintes e é sempre ajustada para corresponder ao ritmo da criança.
É aconselhável que o mesmo progenitor acompanhe a criança durante a fase de integração – esta continuidade oferece a maior tranquilidade ao seu filho. Embora dependa da criança, um dos pais deve planear 3-4 semanas para o processo de integração. Além disso, é fortemente aconselhado a não ir de férias nos primeiros 3 meses após a integração para realmente permitir ao seu filho instalar-se na escola; caso contrário, há o risco de ter de reintegrar o seu filho.”
Fonte: https://www.familie.de/kleinkind/berliner-modell
Dito tudo isto, teremos de apaziguar a culpa dos pais. Na esmagadora maioria das creches não há qualquer preparação e disponibilidade para uma adaptação com a presença de uma figura de referência. O que fazer enquanto o cenário não mudar? Abrir um diálogo assertivo com os educadores, com as direcções pedagógicas, com os directores das instituições. Até porque a adaptação escolar também toca aos pais, e eles não podem ser responsabilizados por processos difíceis ou mal sucedidos quando estão apenas a garantir a vinculação segura dos seus filhos. Ouve-se muitas vezes dizer que os culpados do stress nos primeiros dias de creche são os pais, e sobretudo as mães, que têm mais dificuldade ainda que os bebés em separar-se. Isto é de uma profunda falta de empatia e respeito pelos pais.
A nossa proposta é que se criem condições para que a adaptação à creche seja um período muito específico das vivências institucionais, com a total abertura aos pais e rotinas propícias à sua integração até haver a transferência da figura de referência por parte de cada bebé. Até ele não mais se esconder atrás das pernas da mãe quando vê a educadora, até ele querer brincar, mostrar a escola, fazer amigos e recorrer às novas figuras de referência quando se sente mal, sabendo que ali tem também um porto seguro. Só assim teremos período de vinculação, e não de resignação.
Este texto é um excerto do artigo completo “O valor da creche e pré-escolar: a cultura, a economia, o poder dos pais e a saúde infantil” publicado em Setembro de 2022 no blogue www.educasao.org.