Brincar é uma faculdade inata do ser humano, ele está desenhado para isso e não precisa de incentivo ou estimulação para tal. No brincar livre o bebé desenvolve a sua identidade, explora os seus limites, conhece o seu expoente máximo, e sobretudo, pode ser em pleno. E essa é uma capacidade que deveríamos saber manter até ao fim dos nossos dias, mas nos dias que correm até às crianças está a ser negada.
Em contexto de pandemia parece que brincar passou a ser tão desnecessário para as crianças como já era para os adultos. Muitos parques infantis estão fechados, os intervalos das escolas foram diminuídos ou mesmo extintos e a liberdade para decidir como, quando e onde brincar nunca esteve tão condicionada.
Infelizmente ainda abunda a crença de que brincar é entreter-se. Que é coisa de criança que tem tempo a mais e que não sabe ainda o suficiente para trabalhar e ser produtiva como os adultos. Friedrich Froebel e mais tarde Maria Montessori descreviam a brincadeira como trabalho, porque realmente a criança entrega-se à brincadeira da forma que os adultos gostavam de entregar-se ao trabalho: com absoluta entrega e prazer. Myrtha Chokler, seguidora de Emmi Pikler, dizia que “brincar compromete uma actividade essencial que não é mais motivadora nem tem outro objectivo para além do prazer de brincar. Portanto o brincar é livre ou não é brincar. A criança realiza-se a brincar. Na verdade, ela não brinca, ela vive.”
Porque é que esta visão sobre a brincadeira como construtora da identidade do ser humano ainda está presa nas pedagogias mais alternativas, enquanto nas escolas convencionais reina o brincar direccionado, as actividades estruturadas, a brincadeira conduzida? Não estaremos assim a criar indivíduos indiferenciados e dependentes quando cada vez mais o mundo precisa de pessoas resilientes e com carácter único?
“O brincar escapa aos adultos porque o vêm como algo separado do aprender, o que é absurdo, abusivo e cruel”, dizia o pedopsiquiatra João dos Santos.
Eu defendo com todas as minhas forças o brincar livre. Para ser brincadeira livre e espontânea, a única em que não está a cumprir objectivos de outros mas apenas a própria motivação, ela tem de partir do interesse genuíno da criança. Não é necessário dirigir, nem sequer propor o que quer que seja, apresentar ou explicar o que for. E isto começa no logo em bebé. Os seres humanos precisam de brincar livre e espontaneamente desde que nascem, e não apenas quando já têm autonomia para falar, correr ou fazer amigos.
É urgente deixar de condicionar o movimento e a brincadeira dos bebés. Ao mesmo tempo que estão brincar, estão também aprender sobre si e o mundo, por isso condicionar essa aprendizagem é condicionar o ser. Brincar é uma necessidade, uma actividade, um interesse e um direito dos bebés. É claro que podemos brincar com eles, vamos simplesmente manter presente que quem conduz a brincadeira são eles e que sempre que não precisem de nós podemos aproveitar para observá-los e conhecê-los melhor, porque é também na brincadeira que se revelam os interesses que muitos pais e educadores não reconhecem nas crianças, então assim etiquetadas de preguiçosas, desinteressadas, hiperactivas ou inábeis.
Os seres humanos nascem com a capacidade de brincar e vão-na perdendo à medida que crescem. O primeiro brinquedo do bebé é as suas mãos, que descobre com muita curiosidade, depois os pés e depois o próprio movimento permite-lhe ir avançando e explorando o mundo material à sua volta. Os bebés interessam-se por tudo e por nada. Os bebés não precisam de brinquedos. Precisam de um espaço seguro e de tempo para brincar.
No entanto, o que se passa nas creches?
Os bebés ficam deitados a olhar para mobiles que eles não conseguem alcançar, muitas vezes mal dimensionados e que só atrapalham o seu interesse pelo seu corpo e pelo ambiente que os rodeia. Depois são sentados com apoio de almofadas ou objectos bizarros e são convidados a brincar com objectos escolhidos pelos adultos. Colocados numa posição que não dominam, os bebés não brincam. Eles não brincam se foram obrigados a estar de barriga para baixo em que nem conseguem mexer os braços. Não brincam se foram sentados em volta de almofadas e fazem um grande esforço para não cair.
Em movimento livre, os bebés mudam de posição constantemente e sempre segundo o seu propósito, e manipular o seu movimento ou postura é condicionar toda a sua acção. À medida que crescem os bebés são convidados a realizar actividades que preencham um portfólio assinalável que deixe nos pais a ideia de que estiveram muito ocupados e que se desenvolverão muito rápido. Pintam folhas, fazem desenhos de sóis e estrelas com a mão da educadora a guiar a mão deles ou olham atentos para uma demonstração de como encaixar dois cubos. Quando crescem e já andam bem podem ir lá fora um bocadinho, entre aulas de ginástica e inglês, apanhar ar e correr um pouco.
Em casa passam horas a olhar para brinquedos cheios de luzes, sons, cores e ecrãs que fazem tanta coisa que o bebé fica passivamente a assistir. Quando entram no 1.º ciclo, a maior parte das crianças já não sabe brincar. Em casa é suposto assumirem responsabilidades de adultos e na escola dedicam-se a aprender tudo aquilo que os livros podem ensinar, e perdem o mais valioso para a sua existência: conhecerem bem quem são.
É urgente deixarmos as crianças brincarem pela sua livre vontade.
Eu diria que o que garante que elas podem atravessar os tempos duros que vivemos é precisamente esta oportunidade para se evadirem no seu trabalho e des-envolverem o seu expoente máximo.
“A brincadeira e o tempo a ela consagrado é fundamental. Pode ser a resposta para a maioria dos males”, disse há pouco tempo o professor Carlos Neto.
Deixem os bebés explorar todos os cantos da casa, deixem-nos ir à rua, tocar na relva, na areia e na terra, subir os escorregas, descalçar os pés e descobrir quem são. É isso que os vai tornar imunes, em todos os sentidos e todas as adversidades.
Aquilo que se está a passar na rua e nas escolas é a catástrofe da infância.
O direito a brincar não pode ser condicionado nem numa pandemia.
Temos de parar e deixar as crianças brincar. Porque isto Assim Não é Escola (*). Isto assim não é vida.
(*). O movimento Assim Não é Escola foi criado por pais, pediatras, psicólogos e outros cidadãos que estão em desacordo com as actuais medidas emitidas pela Direção-Geral da Saúde (DGS) para o funcionamento dos estabelecimentos de ensino em contexto da pandemia Covid-19. Para saber mais visite assimnaoeescola2021.blogspot.com e as redes sociais. Para apoiar assine a petição online “Pela revisão das orientações da DGS para o ano letivo 2020/2021”.
Texto originalmente publicado a 25/11/2020 em https://www.matrioska.pt/