“Quando em 1946 Emmi Pikler criou o instituto Lóczy, o seu principal objectivo era a erradicação dos factores de carência da vida das crianças que, por qualquer razão, não puderam ser criadas juntos das suas famílias e eram confiadas, dia e noite, a uma instituição. […] Ela rompeu, de forma consciente e radical, com a maneira tradicional de proceder nas instituições. […] A criança é considerada e tratada, desde o começo, como uma pessoa em desenvolvimento constante e, ao mesmo tempo, como uma pessoa completa em cada momento da sua vida cujas necessidades essenciais mudam em função do seu desenvolvimento.” – Judith Falk
Hoje temos a tendência para apressar do desenvolvimento dos bebés e desrespeitar o seu ritmo natural e as suas iniciativas e movimentos, talvez por reflexo de uma cultura produtivista, consumista, digital, e sobretudo “adultocêntrica”, onde o bebé parece encaixar como um aspirante a adulto, essa fase da vida em que finalmente nos consideramos desenvolvidos e completos. Mas o bebé é uma pessoa completa desde que nasce.
Emmi Pikler foi uma pediatra húngara que revolucionou o olhar sobre os bebés. Nascida em Viena em 1902, é tida como referência na área da educação por ter criado uma abordagem inovadora para o acompanhamento de crianças na primeiríssima infância. Em 1946 foi convidada para dirigir o orfanato em Lóczy. Ela começou do zero numa abordagem que punha a relação no centro das acções. Hoje Lóczy é um instituto/escola que inclui uma creche e uma enorme referência mundial em pedagogia. A abordagem de Emmi Pikler não é um método mas uma inspiração para imensos contextos actuais.
Em Lóczy, Emmi trabalhou três princípios:
- a segurança afectiva como base para a qualidade da relação com o meio, da actividade motora e do brincar
- a auto-consciência como forma de desenvolvimento pessoal: que a criança possa sempre estar plenamente consciente do que acontece consigo e assim possa situar-se no seu mundo interno e no externo com autonomia em relação aos adultos
- o estado físico como interdependência da segurança afectiva e da auto-consciência, ou seja, está tudo relacionado e nenhum destes pontos existe sem os outros
Em Pikler, a segurança deriva da consistência, continuidade e previsibilidade dos cuidados.
As competências do bebé revelam-se tanto mais quanto as necessidades de afecto estão garantidas. Isto é revolucionário porque ainda hoje se acredita que os bebés têm de se habituar a ser independentes à força, quando a independência, como eu gosto de dizer, é um estado e conquista-se, não se obriga ninguém a ser independente.
Ver a criança como um ser completo é a grande inovação, a grande transformação que Emmi Pikler propôs. É impressionante (e desanimador) que quase um século depois ainda seja necessário colocar esta reflexão na ordem do dia.
Emmi via o bebé como alguém competente que merece em toda a sua existência sentir-se acompanhado e apoiado, e sobretudo sentir-se um sujeito activo no seu desenvolvimento. O bebé é o protagonista do seu desenvolvimento, não o adulto.
“O bebé não é uma marioneta nas mãos de um adulto todo-poderoso” – Emmi Pikler.
À primeira vista, são os cenários opostos. Mas o que Emmi Pikler descobriu no seu instituto está agora, 100 anos mais tarde, a ser confirmado pela neurociência e a ser largamente difundido pelos princípios da parentalidade contemporânea. A conexão com um bebé é o motor do seu desenvolvimento.
Sabemos que o grande estímulo sobretudo nos primeiros 3 anos é a relação com o cuidador principal. O bebé desenvolve a sua auto-imagem e constrói a sua pessoa a partir do que o mundo lhe devolve nas suas acções. A relação é realmente a base para o crescimento.
As teorias do apego e os estudos sobre o desenvolvimento do cérebro humano nos primeiros anos levam-nos a este ponto de partida: o vínculo é a base da autonomia.
O que é que um orfanato tem a dizer a uma família?
Numa frase, Pikler é criação baseada na confiança.
Antes de trabalhar no orfanato, Emmi Pikler (que era médica mas mulher, e por isso não podia exercer em nome próprio) trabalhou em consultório com um colega que via o bem-estar e a saúde como prevenção. Mais tarde, trabalhou 10 anos a aconselhar famílias na conciliação das necessidades adulto/bebé. Tudo isto lhe trouxe uma visão muito aguçada sobre o poder dos cuidados. Realmente é nos cuidados que nutrimos os bebés. Mas ainda acreditamos que o tão falado “tempo de qualidade” é outra coisa. Porque apressamos as mudas das fraldas, que são o acto mais íntimo de todos, para depois irmos brincar com o bebé e ensinar-lhe coisas que pode aprender por ele mesmo?
Foi na grande dificuldade em compreender quando o bebé precisa e não precisa de ajuda dos adultos que Emmi Pikler fundou a sua abordagem. Hoje ela é conhecida no mundo inteira e usada não apenas na infância mas também noutros contextos, como lares de terceira idade.
O olhar sobre o bebé como alguém capaz
“Bebé competente” é uma expressão que Emmi criou em 1978 e com a qual trabalhou por muitas décadas com famílias e bebés institucionalizados.
Quando nasce, um bebé consegue ver bem a distância que vai dele ao rosto da mãe, focar o olhar no sorriso dela e aos poucos começar a rodar o pescoço para tomar consciência do meio ambiente, treinar a coordenação motora, visual e espacial… Depois descobre as mãos, chega aos pés, descobre os sons que o corpo é capaz de produzir, distingue a mãe do pai, distingue cores… são tantas as conquistas e são tão rápidas! Em cada fase da sua vida, o bebé é um ser completo, mediante as suas possibilidades, ele tem em si tudo o que necessita para se desenvolver, haja um ambiente seguro e um cuidador atento, que confia nele. Esse olhar de confiança é o ponto de partida para o seu bom desenvolvimento.
Em Lóczy, os cuidados são prestados com a máxima atenção e gentileza, e quando estão acabados, os bebés partem para a brincadeira auto-induzida e guiada porque realmente não precisam mais do adulto. Têm as necessidades atendidas e não se sentem privados de atenção porque o adulto está sempre disponível, mesmo quando não está activamente com a criança.
O bebé é um indivíduo dentro de um grupo que escolhe cooperar, não é alguém passivo obedecendo a regras e a autoridade mas um sujeito activo com um verdadeiro espírito de cooperação.
As crianças criadas no Instituto Pikler são competentes, curiosas, interessadas e exploradoras. Janet Gonzalez-Mena, seguidora de Pikler/Gerber/RIE descreve estas crianças acompanhadas por abordagens baseadas na paz como tendo uma capacidade maior que a média de terem:
• Auto-estima, competência social, estabilidade emocional
• Empatia, assertividade, resolução de problemas de forma não-violenta
• Cuidado ao outro – capacidade para cuidar bem de si e do outro
• Habilidade para viver de forma cooperativa em família e em comunidade
Estas são as competência do futuro.
Os cuidados de qualidade
“Ela espera a tensão deixar os seus músculos antes de começar. Ela é gentilmente diretiva assim como responsiva. Ela diz a ele para fazer alguma coisa e espera pela resposta corporal antes de continuar. Ela diz a ele cada passo do caminho, sempre o mantendo focado na tarefa em si e na interação com ele. O modo como ela faz a troca de fraldas vai construindo a relação entre eles.” -Janet Gonzalez-Mena
O mundo interno e o mundo externo configuram-se inter-relacionados. O bebé interpreta o mundo através do trato que lhe dão. A sua individualidade acontece a partir de estímulos externos, com os quais forma uma imagem mental de si próprio como ser distinto do outro e do ambiente. A pele é a primeira fronteira entre o indivíduo e o meio. O maior protector e o maior sensor. O meio de comunicação primeiro.
Pikler observou a estrita relação entre os cuidados de qualidade e a autonomia, ou seja, a forma como uma relação de conexão profunda com o bebé durante os cuidados o deixa nutrido para seguir para a sua actividade sem precisar do adulto. Pais e filhos têm confiança mútua. A criança da qual nos desinteressamos não pode ser autónoma. A qualidade da actividade dela depende da qualidade da relação com o adulto de referência.
A forma como vestimos e despimos a roupa, mudamos a fralda e damos banho, influencia muito o que a criança entende sobre si mesma e sobre o mundo. Pikler defende que os momentos de vínculo por excelência são os dos cuidados, e não a brincadeira. Não é necessário entreter o bebé porque isso ele pode fazer por si mesmo e a interferência pode mesmo privá-lo da experiência. Não é necessário estimular o bebé. É necessário sim dar-lhe toda a segurança afectiva que precisa para partir à descoberta do mundo.
Pikler é a pedagogia dos detalhes porque é nas coisas muito pequenas que se define a relação: não colocar uma fralda sem que o bebé tenha consentido, dizer-lhe que lhe vou colocar a roupa, dar-lhe tempo e espaço para se tornar activo.
Quando quero vestir-lhe uma camisola digo-lhe que precisamos de o fazer e aguardo que me estenda o braço: é nestes pormenores que se faz a diferença, que se descobre a criança e se consolida o vínculo. Que se garante as condições necessárias para que autonomia floresça.
A motricidade livre
O desenvolvimento motor livre e o brincar desenvolvem-se sem intervenção do adulto. Andam juntos e não podem distinguir-se por completo nos primeiros anos. Os bebés aprendem a virar de lado, a rodar sobre si mesmos, a rastejar, a gatinhar, a sentar, e a andar sem interferência do adulto, sem tummy time, sem almofadas à volta, sem treino. O impulso para o movimento é inato e a aquisição de posturas e deslocações no espaço é feito a partir d uma motivação intrínseca que torna o bebé altamente consciente do seu corpo em cada movimento. Emmi Pikler estudou a fundo o desenvolvimento motor e desde o início defendeu que os cuidadores não deve ensinar os bebés a mexerem-se, mas deixá-los num chão seguro e observar. Com isso descobriu que as posições adquiridas eram muito mais do que se imaginava, e que os bebés podiam demorar mais a chegar a cada uma dela, mas a qualidade com que o faziam contribuía para a sua consciência corporal, espacial e emocional, e para uma prudência rara.
No seu livro “Moverse en libertad: Desarrollo de la psicomotricidad global”, a autora publica um estudo com mais de 720 crianças que cresceram em Lóczy em motricidade livre e que se torna referência mundial. Esta é talvez a faceta mais conhecida da abordagem.
Um dos materiais criados para apoio à motricidade, o triângulo Pikler, tornou-se um ícone e entrou na moda na puericultura e vendem-se cópias sem qualquer fundamento pedagógico por trás. Emmi lembra sempre que é o olhar global sobre o bebé que o forma para a competência.
Quando eu comecei a estudar Pikler fascinei-me automaticamente pela descoberta desta relação dialética: se os cuidados são de qualidade, o brincar é mais livre. Se a brincadeira satisfaz, os cuidados tornam-se mais fáceis. A relação também fica mais fácil e dá mais prazer: é a magia da conexão.
A observação pikleriana: uma ferramenta fundamental
Na base de tudo o que define Pikler está a grande ferramenta para o conhecimento do bebé: a observação.
Para o cuidador, a observação não é apenas uma ferramenta valiosa para conhecer o bebé mas também uma forma aumentar o interesse por ele: observar o desenvolvimento livre de um bebé é uma descoberta não tem fim e leva a um conhecimento profundo de cada ser.
A observação pikleriana foi sendo praticada em Lóczy com critérios cada vez mais profundos e hoje é usada em várias instituições.
Nas famílias, falamos muito se sentir o bebé. O instinto da mãe deveria ser suficiente para criar as ferramentas necessárias para acompanhar cada filho. Mas talvez hoje vivamos demasiado longe do nosso instinto e ou talvez ele precise de uma ligação integrada com a nossa mente: estou a falar de conexão, de mindfulness, termos tão falados hoje em parentalidade.
Em Pikler, a observação é a via para a conexão. Uma mãe pode sentar-se no chão com o seu bebé enquanto ele brinca, e em vez de fazer por ele, pode olhar atentamente para o que ele faz, à descoberta da sua competência, despida de todas as expectativas, e assim aprenderá a reconhecer cada sinal do seu estado de ânimo, cada interesse, cada pista sobre como preparar o ambiente, oferecer os materiais e brinquedos, lidar com as emoções.
Hoje esta abordagem é aplicada no mundo inteiro. Não há mais nenhuma creche Pikler, mas há inspirações em quase todos os países ocidentais. Em Portugal há um grupo de estudos e alguns profissionais que começam a despertar para esta forma de estar.
A minha certificação na LÓCZY FOUNDATION FOR CHILDREN trouxe-me um background sólido de conhecimentos que apresento às famílias no curso O CUIDAR, O MOVER E O BRINCAR DOS BEBÉS e em todos os conteúdos e serviços que vou criando. Alio esse conhecimento a estudos em neurociência infantil e à teoria do apego.
Por famílias conectadas com o seu instinto e as suas capacidades de atender ao outro, de cuidar e cuidar-se, de respeitar o ritmo da humanidade, de honrar o nosso papel no mundo
NOTA: a imagem de capa é de Marian Reismann, 1969 e todos os seus direitos são reservados a Pikler® Studio.